A primeira década do Século 21 já está se foi. A Humanidade está experimentando uma vertiginosa aceleração histórica. As informações estão muito mais rápidas, as transformações tecnológicas nos mais diversos setores da ciência se apresentam em curva exponencial de crescimento, a comunicação se faz em tempo real, mesmo entre os mais recônditos lugarejos do planeta. Já não é possível, para um cérebro que não se modificou muito em relação aos primeiros “homo sapiens” que viveram há cerca de cinqüenta mil anos, dar conta de tantos estímulos. O mundo ficou muito mais complexo. O conhecimento se entrelaça de tal forma que exige abordagens multilaterais e, ao mesmo tempo, compele o indivíduo a uma superespecialização por vezes alienante.Na globalização, as fronteiras tradicionais que delimitavam culturas diferentes desapareceram. As facilidades tecnológicas, o poder do conhecimento instantâneo, a possibilidade de reunir pessoas que estão em diferentes continentes pela internet e outras inúmeras maravilhas da modernidade, prometiam uma democratização do conhecimento, e, por conseguinte, do poder. No entanto, o que se vem observando é o aumento geométrico do abismo que separa a minoria que tem acesso à informação e ao dinheiro, daquela maioria atrasada, ignorante, pobre, mal nutrida e doente. Formaram-se grandes empresas supranacionais, mais poderosas que os estados e que lhes usurpam o espaço. Aproximadamente trezentos e cinqüenta pessoas, os controladores das referidas corporações, manipulam metade do PIB mundial. As três pessoas mais ricas do mundo têm um orçamento supsuperior à soma dos orçamentos dos quarenta e oito países mais pobres. Somente um por cento da população mundial possui nível superior de educação ou mesmo um computador. Seis por cento detêm metade dos bens de consumo, enquanto oitenta por cento vivem na pobreza, sendo que cinqüenta por cento na mais absoluta miséria. Dois bilhões de pessoas são “desmonetizadas”, ou seja, não têm contato com o dinheiro. Quarenta mil crianças morrem diariamente por desnutrição. A globalização falhou clamorosamente no intuito de distribuir riqueza, tendo, na verdade, promovido uma grande concentração de renda, além de uma perversa massificação, difundido, via televisão, um modo padronizado de ser, que vai sendo aos poucos inculcado no imaginário coletivo, inatingível para a grande maioria da população.Presenciaremos, num futuro não tão remoto, a dissociação total da espécie? Uma separação tão profunda que impedirá a comunicação pela disparidade dos códigos lingüísticos e mesmo de pensamento? Um pequeno grupo dominante de um lado e hordas desvalidas de outro? Já vivemos, em nosso meio, uma velada “guerra civil”, onde o Estado legalmente constituído já não tem controle sobre o aumento da criminalidade, da corrupção, da violência, das drogas, da degeneração dos serviços públicos e outros males que assolam os países chamados “em desenvolvimento”.Fica difícil, diante desta realidade avassaladora, desta dicotomia social esquizofrenizante, não “enlouquecer”. Os fatores estressores que incidem sobre os indivíduos mais propensos a desenvolver transtornos mentais estão inquestionavelmente aumentados. Apesar da reconhecida importância do componente genético, a prevalência de transtornos psiquiátricos está intimamente relacionada às condições econômicas, sociais e culturais.Nós, médicos, somos testemunhas permanentes destas realidades tão distintas. Na clínica particular os pacientes têm acesso a medicamentos caros e à tecnologia de ponta. Já no serviço público, vivemos uma catastrófica situação. Além da total degradação dos serviços decorrente do interminável encolhimento dos recursos destinados à saúde, sabemos que os pacientes nem chegam aos hospitais e ambulatórios por não disporem de dinheiro para a passagem de ônibus, quanto mais para comprarmedicamentos.A saúde mental pode ser definida como um estado de bem estar no qual o indivíduo reconhece e exerce suas capacidades, está apto para lidar com o stress normal da vida, trabalhar produtivamente e, de forma profícua, contribuir para a melhoria de sua comunidade. Portanto, não basta que nós, psiquiatras tentemos, idealísticamente, promover uma assistência mais eqüitativa, de melhor qualidade, mais humana. É preciso que nos engajemos no sentido de pressionar nossas autoridades, que fingem prestar serviços à população, no sentido de que sejam disponibilizados os melhores recursos que a ciência proporciona, além de lutar por maior justiça social. Não é mais possível aceitarmos passivamente que se desperdice tantos recursos por falta de planejamento, coordenação, incompetência administrativa e corrupção. A decência impõe que exijamos a possibilidade de praticar uma medicina cientificamente comprovada, responsável, ética, segura para os pacientes e para nós.
Marcos Gebara