Uma das ocorrências mais importantes do Congresso Mundial de Psiquiatria ocorrido no Cairo em 2005 foi a divulgação, na Assembléia de Delegados, de um documento intitulado “Declaração de Consenso Sobre o Uso e Segurança da Eletroconvulsoterapia”, produzido pela Seção de Psiquiatria Biológica da WPA e que deverá pautar todos os “guidelines” das Associações afiliadas pelo mundo. Resumidamente, diz o seguinte: A Eletroconvulsoterapia (ECT) é um importante, porém controverso tratamento para alguns subgrupos de indivíduos padecentes de graves doenças mentais. Basicamente, abrange as depressões graves, estados de mania, catatonia e, ocasionalmente, esquizofrenia. Dependendo das comorbidades, pode constituir um procedimento de risco variável. Deve ser aplicado, de preferência, com o expresso consentimento do paciente ou responsável legal, num ambiente adequado às novas normas de administração.O objetivo desta Declaração é evidenciar a eficácia e segurança da ECT e prover elementos e recomendações para otimizar sua prática. Nos transtornos depressivos graves, a ECT é largamente considerada o mais efetivo método de tratamento, quando comparada a qualquer outra modalidade, mesmo ao amplo espectro de opções farmacológicas, sendo particularmente indicada na presença de sintomas psicóticos delirantes ou catatônicos e, principalmente, risco iminente de suicídio. Desde sua introdução, na década de 30, vem angariando importantes progressos, como o uso de anestesia e relaxamento muscular, no sentido de aumentar sua segurança e tolerabilidade. O ressurgimento da ECT nos Estados Unidos, nos anos 70, foi marcado por uma grande “resistência” ao tratamento, insuflada por uma falsa imagem de barbárie e coerção. Em contrapartida, a ciência mostrava cada vez mais sua importância, e propunha modernos recursos para sua aplicação. Foram produzidos, pelas grandes Associações da Especialidade, diversos algoritmos para humanizar seu uso. O tratamento é categorizado por uma fase aguda para induzir a remissão dos sintomas, cobrindo um período de 6 a 8 semanas, uma fase de continuação, correspondente às subseqüentes 16 a 20 semanas, no sentido de manter a remissão (evitando recaídas) e atingir a plena recuperação, e uma fase de manutenção, visando prevenir as recorrências, de duração flexível, dependendo de critério médico e considerando a virulência previa do transtorno. A boa prática repousa ainda num correto diagnóstico e minuciosa avaliação de riscos que o paciente possa infligir a si próprio ou a circunjacentes. O expresso consentimento do paciente ou responsável legal deve ser a regra, excetuando condições extremas onde o procedimento seja necessário para salvar vidas ou evitar rápida deterioração física ou mental. Pode ser importante, em determinadas circunstâncias, que a decisão parta de “juntas médicas” constituídas. Um importante subsídio para estabelecer as bases da ECT em evidências foi uma recente e sistemática metanálise dos estudos randomizados controlados e observacionais feita pelo UK ECT Rewiew Group que reportou os seguintes achados:1) Estudos comparando aplicações efetivas de ECT versus aplicações simuladas demonstraram ampla margem de significância estatística em favor das primeiras.2) Estudos comparando ECT e farmacoterapia resultaram significativamente favoráveis à ECT, além de evidenciar a menor incidência de sintomas de descontinuação no grupo que recebeu esta terapêutica.3) A aplicação bilateral demonstrou ser superior à unilateral, porém pode provocar mais efeitos cognitivos adversos, principalmente prejuízo da memória anterógrada, mais encontradiços na primeira semana após o término da fase randomizada dos estudos, diminuindo sobremodo a longo prazo.4) ECT em procedimentos administrados de uma a três vezes por semana foi eficaz não sendo eliciada diferença significativa entre as três maneiras e não houve diferença quanto aos sintomas de descontinuação. No entanto, freqüências superiores podem levar a maiores prejuízos cognitivos.5) As doses mais altas do estímulo elétrico implicaram em melhores resultados quanto à melhora dos sintomas, mas também produziram mais efeitos adversos.6) As aplicações utilizando pulso breve e onda quadrada demonstraram largamente ser mais eficazes e produziram menores efeitos adversos.Outros importantes subsídios foram a recente Cochrane Rewiew, que evidenciou a superioridade da ECT em deprimidos idosos e a NICE Rewiew, com 90 estudos randomizados controlados, que reforçou os dados supramencionados e acrescentou que doses mais altas do estímulo elétrico unilateral no hemisfério dominante podem assemelhar-se, em termos de eficácia, às aplicações bilaterais, às custas de aumento na ocorrência de efeitos cognitivos adversos que não devem durar mais que seis meses após o término do tratamento. Estudos de neuroimagem não demonstraram qualquer indício de que ECT possa causar destruição neuronal. Altas taxas de recaídas foram relatadas após a remissão completa dos sintomas com ECT, sendo que estas foram enormemente reduzidas com a introdução de farmacoterapia na fase de continuação, conforme estudos de Sackheim.Na Esquizofrenia, a Cochrane Rewiew, a NICE Rewiew e estudos de Suzuki, Tang, Ungvari e Sackheim evidenciaram a superioridade da farmacoterapia antipsicótica quando comparada à ECT (excetuando os estados de agitação psicomotora agudos e estuporosos relativos à catatonia), mas enfatizaram a eficácia da ECT demonstrando benefícios clínicos significativos e como as variações na administração da terapêutica influenciaram a evolução. Poucos pacientes deixaram de se beneficiar com ECT (aplicações efetivas), obtendo melhora dos sintomas e menores índices de recaídas quando comparados aos que receberam aplicações simuladas. A associação de ECT com farmacoterapia nas fases de continuação e manutenção foi superior ao uso de fármacos isoladamente, mas também aumentou as taxas de prejuízos cognitivos. Os estudos demonstraram fartamente que a ECT pode ser muito valiosa no rápido controle de estados maníacos graves e também no tratamento de manutenção dos Transtornos Bipolares refratários, cicladores rápidos e estados mistos. A ECT pode ser considerada uma poderosa arma no tratamento de grande parte das emergências psiquiátricas, assim como pode ser decisiva para salvar vidas para certos casos de Síndrome Neuroléptica Maligna, mormente os que não respodem à farmacorterapia específica. ECT tem demonstrado, ainda, ser de grande valia em alguns casos de TOC, demência e Parkinson. Cabe ressaltar o bom uso de ECT em condições especiais, como gravidez, idosos e crianças, sempre obedecendo criteriosos cuidados. Quanto aos riscos, a mortalidade associada à ECT é menor do que aquela associada aos procedimentos menores de anestesia geral, ou seja, 1/ 100000, sendo exclusivamente devida a complicações cardíacas. Não há contraindicações absolutas ao uso de ECT, porém deve ser evitado em condições como tumores e infarto cerebrais, arritmias cardíacas graves, portadores de marca-passos, aneurismas, descolamentos de retina, infarto do miocárdio e feocromocitoma. Nos tempos hodiernos não se justifica a prática da ECT sem anestesia, relaxamento muscular, ventilação, além do uso de medicamentos como atropina para prevenir bradicardia vagotônica, succinilcolina como relaxante muscular, e pentotal ou etomidato como hipnóticos. A freqüência recomendada das aplicações varia de 6 a 12 para o tratamento da Depressão, enquanto na Mania o número pode ser superior a 16 sempre divididos em duas ou três vezes por semana. A continuação pode ser semanal e a manutenção quinzenal ou mensal. A dosagem do estímulo elétrico, com eletrodos bilaterais, em pulso breve e onda quadrada, deve estar regulada em cerca de duas vezes a do limiar convulsivo. A observação da convulsão pode ser obtida pela maioria dos aparelhos modernos, capazes de monitorizar o EEG. Quando isto não for viável, o simples garroteamento da extremidade de um membro pode evidenciar as contrações. Há muita controvérsia sobre a administração simultânea de ECT e psicotrópicos, mas a maioria dos estudos compactua do consenso de que devem ser evitados, quando possível, apenas aqueles medicamentos que têm ação de antagonismo como benzodiazepínicos e barbitúricos. Os algoritmos, de forma geral, recomendam o uso concomitante de antidepressivos e antipsicóticos, especialmente nas fases de continuação e manutenção. Concluindo, mesmo depois de 70 anos, a ECT é um valioso recurso terapêutico para diversas condições psicopatológicas, além de ser um método seguro e bem tolerado. Considerando suas futuras perspectivas, são de alta prioridade o melhor conhecimento de seu mecanismo de ação, assim como estudos mais detalhados nas fases continuação e manutenção. Levando em conta sua inquestionável validade, faz-se mister um esforço das Associações afiliadas à WPA no sentido de conscientização pública, visando desestigmatizar a ECT.